Foi esta a imagem do português com que crescemos, a que ouvimos milhares de vezes em cafés, programas de televisão, jornais, livros e no cinema: somos o povo do fado, não sabemos dançar como o irmão brasileiro, não sabemos fazer a festa como o vizinho espanhol, não temos o dom de nos auto-depreciarmos com gosto como o civilizado amigo inglês.
E, no entanto, esta gente ri-se. Assim de repente, e recorrendo apenas a exemplos inevitáveis, riu-se do provincianismo das suas elites (com Eça), riu-se da mesquinhez de, bem, de toda a gente (com Camilo), riu-se do absurdo dos seus atavismos e dos seus ascensores sociais (com Herman), riu-se da sua linguagem vazia (com o Gato Fedorento). No entanto, riu de quê e como? Quantas vezes e porquê? Mais que tudo: riu-se em português?
Ao longo dos séculos temos teorizado sobre o nosso humor, convictos que o devir nacional nos empurra para a desgraça desde que começámos a desbaratar o império graças a um rei adolescente desaparecido em Ceuta. E é com a mesma tranquilidade com que nos atribuíamos uma resignação mórbida que dizemos que nunca houve tanto humor como hoje. Talvez o século XXI ande a correr-nos melhor, talvez tenhamos aprendido como fazer rir os conterrâneos.
Será?
Uma antologia facilita a tarefa de tentar perceber o que terão sido os humores nacionais, pelo menos no que toca aos últimos 40 anos. Chama-se, apropriadamente, "Antologia do Humor Português", é organizada por Nuno Artur Silva (humorista e dono das Produções Fictícias) e por Inês Fonseca Santos (jornalista). Cobre, segundo a premissa dos seus autores, o período que vai de 1969 a 18 de Abril de 2009. Estamos quase lá, motivo mais que suficiente para inquirir o que é (ou foi) isso do humor nacional.
A compilação aponta caminhos, mas tem as suas particularidades. Primeira: devido à escassez de textos especificamente de humor são incluídos textos literários que usam o humor, o que pode levar a uma confusão de género: uma coisa são textos "de" humor, outra textos "com" humor... Por outro lado, esta mistura tem a vantagem de mostrar que certos escritores com propensão para a tragédia também recorrem com eficácia à arma letal do (sor)riso.
Segunda premissa: só estão presentes textos que tenham sido publicados em livro, o que automaticamente elimina todo e qualquer guião de Herman, uma boa parte dos textos usados em rádio, muito bom texto de jornal (e por isso na introdução os compiladores lamentam ter de deixar de fora as crónicas do magnífico Nuno Brederode Santos).
Sobra o quê? Alguma literatura, alguns desalinhados, alguma poesia, algumas obras colectivas, alguns cronistas. É preciso olhar para as escolhas com calma para percebermos se o retrato é fiel à realidade ou não.
Pobrezinhos, linguagem de bairro
Numa primeira secção, de nascidos antes da década de 1950, juntam-se escritores e poetas com óbvias tendências humorísticas, como Cesariny, Nuno Bragança, Dinis Machado, Assis Pacheco, Alexandre O'Neill, Mário Henrique Leiria, Mário de Carvalho, etc.
Numa segunda secção temos nomes inesperados, como João César Monteiro ou o esquecido José Sesinando, nome que Palma Carmo usava nos seus textos "non-sense" sobre música no "Jornal de Letras".
Na terceira secção temos escritores contemporâneos (Alface, Luísa Costa Gomes, Miguel Esteves Cardoso, Adília Lopes, Rui Zink, Jorge de Sousa Braga, etc). Depois há uma secção para as obras colectivas, que une o "Livro da Treta" aos livros que compilam as notícias saídas n' "O Inimigo Público", ao livro do blog Barnabé, ao do Gato Fedorento (etc).
Numa última secção temos uma estranha mistura de "jovens", que vê Nilton emparedado entre Pedro Mexia e Nuno Costa Santos, e junta o cronista Rui Tavares a José de Pina e Eduardo Madeira.
"Quando começámos a ter de delimitar o objecto decidimos não nos debruçar sobre filmes, sketches, jornais porque não teríamos tempo. Por isso ficámos no que saiu em livro - da literatura, rádio, blogs, etc", diz Nuno Artur Silva, justificando a opção, que não é de todo pacífica.
Miguel Esteves Cardoso (MEC) assinala o facto realçando que "é uma antologia feita pelas Produções Fictícias. Não é uma antologia no sentido nobre do termo - e estou à vontade para o dizer porque sou quem tem mais páginas lá dentro. Mistura alhos com bugalhos." MEC deixa bem claro que "o humor é uma nota, uma cor que se dá, dentro de todas as cores. A escrita humorística é outra coisa - é feita para rir, como a escrita porno é feita para dar tesão".
Ainda assim, o livro é um ponto de partida para responder à pergunta: "Existe algum tipo de humor a que possamos chamar português?"
Pode parecer uma questão ingénua, mas a disparidade das respostas diz-nos que não é de simples resposta. Por exemplo, MEC não tem dúvidas que "não existe nenhum humor português". "Existe humor", continua o autor de "A Causa das Coisas", "mas se é feito ou não em português isso é outra coisa". Para vincar a sua posição recorre ao exemplo dos Gato Fedorento: "São nitidamente filhos dos Monty Python", o que lhe permite concluir que "não faz sentido nenhum tentar arranjar uma linhagem humorística portuguesa".
Herman José arrisca apenas dizer que "onde se está mais perto de um humor português é nos filmes do Vasco Santana". Herman explica a ideia: "A partir do 'Pátio das Cantigas' abastardámos, misturando influências vindas de fora. Agora, não há tanta fragmentação no nosso humor como em outros países porque o país é pequeno. Tão pequeno que agora faz tudo de 'gatinhos' como antes fazia tudo de 'hermaninhos', enquanto a revista tenta sobreviver sendo moderninha. E o que percorre tudo isto é sermos pobrezinhos."
Herman, pragmático, entende que esta pequenez, geográfica e comercial (basicamente: não temos mercado porque não temos para onde exportar) determina o humor nacional - não só o produto final como a apetência para rir.
O escritor Mário de Carvalho, que Nuno Artur Silva refere como um exímio praticante do género, também teme qualificar o humor feito cá como essencialmente português. "Para saber se há humor português tinha de o comparar ao holandês ou ao coreano", diz, com graça. O autor do hilariante (e cruel retrato de um certo Portugal) "Havemos de Trocar Umas Ideias Sobre o Assunto" assinala que em Portugal "tem sido predominante o humor da revista, do trocadilho, da graçola, sem atingir nenhum grau de refinamento". Depois aponta factores que influem no humor e podem ser tidos como "portugueses": "Quando se usa a linguagem de bairros populares, com certos tiques de linguagem, certos modismos, talvez aí haja um humor radicado cá. Mas só se for isso. O O'Neill a falar de Campo de Ourique ou de Lisboa com amargura e ironia - mas não sei se isso será português porque não conheço o humor da Dinamarca."
O mais português dos humoristas e as sílabas
O'Neill parece ser considerado - entre os exemplos recentes - o mais português dos humoristas. Nuno Artur Silva considera mesmo que uma das "marcas originais do humor português era a adição de uma certa melancolia, como se encontra no O'Neill, que juntou o melancólico e o satírico". Isso, diz, ainda existe hoje e "está presente num autor como o Nuno Costa Santos (NCS) que pegou na estafeta do O'Neill, com o seu universo de aforismos".
Costa Santos, cujos "Aforismos de Pastelaria" retratam as dúvidas e pensamentos proto-filosóficos de uma série de figuras típicas do imaginário nacional, concede que "há um humor português" e recorre a um exemplo actual para fazer valer a sua tese: "O RAP funde uma linguagem 'non-sense' com - simplificando - a linguagem do MEC, a crónica de costumes, e isso tornou-se especificamente português. Mesmo quando há uma herança dos Monty Python aquilo é filtrado por um olhar português - caso do Herman ou dos Gato Fedorento".
Depois acrescenta que "Bruno Aleixo também representa uma mundividência de Portugal" - curiosamente, Herman considera que o único exemplo de humor a que se pode chamar português desde Vasco Santan é Bruno Aleixo.
Costa Santos introduz uma especificidade no discurso sobre a "Portugalidade", isto é, demonstra como num simples pormenor técnico pode-se encerrar uma ideia de Nação: "Pessoas como o Herman ou o RAP são grandes observadores, têm blocos de notas mentais em que vão registando maneiras de vestir, acentuações - no humor a forma como acentuas uma sílaba ou o 'timing' de uma frase faz toda a diferença e faz a piada funcionar ou não. E é nisto que há a especificidade nacional".
"Se percorrermos as cantigas de escárnio, alguma poesia barroca, Gil Vicente encontra-se muito humor feito em português", lembra Mário de Carvalho. "Não quero ser demasiado assertivo, mas o Camilo e o Eça quase arriscaria dizer que são cómicos", continua. "No Almeida Garrett há um humor fino. E até no Herculano desponta algum humor. Pode dizer-se que o humor não está ausente da literatura portuguesa, quer seja o desbragado, quer o mais solto e popular. E no século XX temos o André Brum, parcerias de teatro e algum Aquilino ("Malhadinhas")". Depois acrescenta a frase fatal: "Mas não temos nada como o Gogol, ou o Mark Twain ou o Wilde."
O francês que se tornou anglo-saxónico
Este é um resumo sintético e possível da herança humorística portuguesa que está ao dispor de qualquer leitor - a herança que os primeiros humoristas profissionais receberam, mesmo que não lhe tenham dado uso.
A tradição disponível era a literatura que recorria ao humor ou, segundo MEC, "publicações como 'A Paródia', e muitos livrinhos e panfletos de morrer a rir" que circulavam desde o início do século. Recorria-se sobretudo, diz Nuno Artur Silva, a uma tradição de escrita "escatológica e obscena. Ultimamente isso já não tem sido recorrente porque já há liberdade de costumes e dizer palavrões não chama a atenção".
Historicamente, recorda Artur Silva, "lá fora, no início do século XX, os humoristas estavam no cinema porque era o meio popular e emergente. Com a TV, nos anos 50, 60, os comediantes foram para o ecrã".
Em Portugal o humor foi gradualmente desaparecendo da literatura, autonomizou-se enquanto género, e profissionalizou-se. Mas desengane-se quem pense que isso é de agora - segundo Herman José, há muitos anos que o humor é profissional por cá, apenas o mercado é que era minúsculo.
Por exemplo: antes do 25 de Abril já se fazia "uma forma de 'stand-up' popular".
Na época, recorda, "um tipo como o Humberto Madeira fazia stand-up que não era popularucho". Já havia companhias de humor e Herman cita as de Henrique Viana, de José Viana e de Camilo de Oliveira. "Era um humor técnico de situações, como aqueles filmes de domingo à tarde, tipo 'Com jeito vai...' ou comédias de enganos - mas não se podia falar em política."
E na revista "havia equipas de escrita muito boas. O Rogério Bracinha e César de Oliveira faziam equipa para a Ivone Silva, tinham coisas muito irónicas. Bastava o violinista ser canhoto para a Ivone dizer: 'Estás a desafinar', o que tinha uma leitura política e era o bastante para arrancar gargalhadas."
Realmente diferente era o acesso à informação: "na província", recorda Herman, "não havia isto: as pessoas eram muito desinformadas. À província iam espectáculos de variedades com o "star-system" da época, as mini-revistas (duos de êxito, melodias de sempre, etc), o Solnado, o José Viana - precursores do stand-up".
Depois aconteceu uma coisa engraçada: "No pós 25 de Abril os gostos pulverizam-se. Percebeu-se que a grande audiência está na novela, que é a grande aglutinadora. Por alguma razão o humor no Brasil é uma desgraça." Segundo Herman, "os escritores de revista", profissionais, note-se, "adaptaram-se e durante muitos anos deram-se lindamente. Os da TV andaram a apanhar bonés - a linguagem da revista que eles adaptavam não servia mais para a TV".
E depois, que aconteceu? Nuno Artur Silva: "Há duas figuras que são muito fortes e quase parece que não há mais nada: o MEC e o Herman, que fizeram uma mudança de modelo - era afrancesado e tornou-se anglo-saxónico".
"Eu importei o 'know-how' de Inglaterra, porque era o humor que mexia comigo", admite Herman, assim contribuindo para a sua tese de que o humor pós-Vasco Santana não é bem português. "Tem a ver com a maneira como se vende a ironia. Quem fizer um bêbedo de aldeia põe toda a gente a rir. Mas um padre a falar contra o casamento homossexual enquanto olha para um jovem em fato de banho..." Herman é realista quanto ao seu sucesso: "Há, em relação a mim, um fenómeno como o das músicas dos Beatles: são coisas que ganharam espaço na cultura pop porque vêm de épocas muito específicas. A altura era pobre. Hoje em dia já não era possível."
Diversidade, informação
Portanto: o humor autonomizou-se da poesia e da literatura, foi para a revista e para o cinema, e daí migrou para a televisão, atingindo o seu máximo, por cá, com Herman. E hoje?
Hoje, para Nuno Artur Silva "os escritores portugueses acabam por ser dominados pela cultura anglo-saxónica. Há uma mudança de modelo, com maior influência dos Monty Phyton. Os miúdos têm referências que não são sequer 'mainstream', mas que os afastam do humor tradicional".
Esta última ideia - de que os miúdos hoje não precisam que os guiem no que toca a humor - é confirmada por MEC: "As gerações com menos de 40 anos conhecem todos os humoristas americanos e ingleses. São muito mais cosmopolitas do que pensamos. Estão a par do último grito do humor."
Há razões de ordem social para isto, como expõe Mário de Carvalho. "Portugal mudou: há mais licenciados e o público é mais exigente." Quando Nuno Artur Silva diz que, "mais que a ditadura, havia um espírito reverencial que fazia com que a comédia fosse vista como um género menor", estará apenas meio certo. O fim da ditadura trouxe por arrasto a democratização do ensino, que, em última instância, faz aumentar a velocidade de transmissão dos gostos.
O que se ganhou nos últimos anos, diz Artur Silva, foi "diversidade de registos". Certos tipos de humor tendem a ficar segundo plano: "O humor transgressor sobre a Igreja já não chama a atenção", aponta Artur Silva. "Os poderes eram mais claros antigamente., Hoje é tudo mais difuso, mais matizado, do poder económico ao mediático", pelo que o humor encontra novos pontos de abordagem.
Apesar de todo este cosmopolitismo, há quem ache que o espectro do humor português ainda é limitado. Mário de Carvalho reconhece que "tem havido tentativas por parte do Gato Fedorento de fazer humor baseado no absurdo e no 'understatement'", mas assinala que "isso não passa pelos humores nacionais". E faz ver que "também não há um humor judaico, baseado nas situações e contradições e absurdos".
Apesar de todo este cosmopolitismo o humor português ainda não tem a dose de agressividade e irrisão do americano. Herman: "É uma questão de tamanho. Há muito mais de 50 Portugais nos EUA. Quando o Letterman faz uma piada sobre o Buch sabe que não vai encontrá-lo ao virar da esquina no dia seguinte."
Herman admite que "agora há mais informação" e que "os temas são mais variados", mas diz que "as coisas estão normalizadas. Como vemos na "Liga dos Últimos" ainda há muito bimbo - mas na Ucrânia também deve ser assim. Vemos cromos maravilhosos mas não é preciso criá-los porque eles já existem". E com maior acesso à informação, há um novo problema: "Os políticos já trazem a sua própria caricatura" e resta pouco ao humorista para fazer.
Humor com influências americanas, disseminado por várias plataformas, numa altura em que parece haver um vazio de poder. Que retirar de tudo isto? Herman, com muitos anos de experiência, é claro: "Estamos numa fase em que ou se tem um fenómeno de moda (como aconteceu com os Gatos) ou só temos novela, que é um bolo de bolacha de emoções que tomou conta das massas. Os programas de humor são satélites. Vivem das migalhas das novelas."
Claro que, longe dos meios mediáticos, há uma "revolução" que "corresponde a uma especialização do humor: os comediantes surgem no meio emergente, que são os blogs e o Youtube" (Nuno Artur Silva). O blog, diz, trouxe "novas formas de humor", mesmo quando não se trata de humoristas puros: há escritores "mais cultos, mais individualistas, com maior diversidade de registos, como o Rogério Casanova (www.pastoralportuguesa.blogspot.com), o Maradona (www.acausafoimodificada.blogs.sapo.pt) , o Mexia."
E algum desse humor é português? Talvez: Costa Santos diz, com graça, que "as disputas de 'one liners' [basicamente: piadas assassinas de uma só frase] no Twitter são variações do fado à desgarrada".